Junção de road movie e um drama coming of age e muito mais (sem spoilers, porém), Até os Ossos (Bones and All, 2022), apesar de guardar algumas semelhanças com Lady Bird, também coestrelado pelo mesmo Timothée Chalamet, não poderia ser e soar mais diferente do filme da Greta Gerwig (que também dirigiu o vindouro Barbie e Adoráveis Mulheres). O diretor, produtor e roteirista italiano Luca Guadagnino (Suspiria, Me Chame Pelo Seu Nome), que adapta o livro homônimo da escritora Camille DeAngelis, opera em outro tom.

Ora se utilizando de um realismo brutal, ora soando agridoce e encantador, Até os Ossos poderá causar sensações e reações adversas. O que é bom, visto que seria realmente estranho que ele não despertasse nada em quem assiste. Ao cumprir uma função básica da Arte, que é a de causar espantos, reações, emoções, indignações, afeto e além, o filme de Guadagnino se destaca ao conseguir tratar, de forma bastante séria, de uma temática que fatal e facilmente encaixaria o filme em outro gênero cinematográfico. Graças ao talento do elenco e da equipe de produção, direção e roteiro, Até os Ossos desvia do gênero mais fácil de ser encaixado e, mesmo a contragosto de quem foi armadilhado pela sinopse ou pelo burburinho que o filme tem exalado, ele se sobressai.

Na obra, Maren (Taylor Russell, fenomenal), jovem estudante que mora com o pai, como qualquer adolescente, possui ações tomadas sem o freio da razão que (normalmente) vem com o avançar dos anos da maturidade. O problema é que as ações desenfreadas de Maren representam um risco a si própria, ao seu pai e aos que convivem com ela, obrigando com que, de tempos em tempos, sua família de dois tenha que se mudar, quase sempre às pressas, de cidade.

Timothée Chalamet e Taylor Russell, os protagonistas do filme.

Em uma dessas mudanças, Maren conhece — embora não se reconheça em — Sully (magistralmente interpretado pelo oscarizado Mark Rylance, de Ponte de Espiões), homem bem mais velho e que anseia por ser, além de um companheiro de rotinas, uma espécie de tutor para a jovem. Sully, cuja natureza aparentemente controlada parece abarcar condições que o outorgam a ser o mentor intelectual de Maren, também possui sua série de sequelas emocionais que jamais foram saciadas, ou, que podem ser controladas.

Como se trata de um road movie, é de se esperar que a protagonista se direcione para outros espaços com certa constância. Assim, em uma das suas mudanças, ela conhece — e dessa vez se reconhece em — Lee (Chalamet, competente no papel), não mais velho ou jovem que ela, e cujos anseios desenfreados também são inerentes à personalidade do rapaz. Juntos, todavia, Maren e Lee se ajudam, se controlam e se acalmam na mesma medida em que também agem como se Bonnie e Clyde ou Sid e Nancy tivessem sido concebidos pela saudosa escritora Anne Rice.

Não à toa, a trilha sonora, que é um dos pontos altos do filme, está repleta de artistas e bandas que sintonizam com a proposta mais atmosfericamente radical, jovial e em permanente movimento do filme e do seu duo de protagonistas.

A dupla Trent Reznor (Nine Inch Nails) e Atticus Ross — programador e produtor de outros tempos do NIN, e que depois foi incorporado à banda — é responsável pela trilha-sonora da obra, que conta, além do trabalho instrumental da dupla oscarizada pelo filme A Rede Social (2010), com a bela e intimista canção-tema do filme: (You Made It Feel Like) Home. Adequadíssima ao longa como um todo, e ainda revestindo emocionalmente seus dois personagens principais, a canção deve ser alvo de várias premiações.

Em um dos momentos mais interessantes de Até os Ossos, que é seguido por uma das mais profundas e belas canções da banda Joy Division, a soma de música, personagens e contexto dramático inverte toda a chave que estávamos prestigiando e insere, ainda que momentaneamente, o filme em um contexto bem mais agridoce, inconsequentemente leve, jovial e apaixonante.

E se uso e usarei expressões como ‘agridoce’, ‘contragosto’, ‘exalado’ e ‘saciadas’, acreditem, é porque o filme nos instiga a isso. Por isso, ouso apenas resvalar em detalhes sem nada entregar a quem me lê, pois a obra deve ser digerida com a cautela que muitas vezes falta aos personagens, visto que o filme contém delicadezas que destoam da verborragia gráfica que é mostrada (sem ser na integridade), a partir de enquadramentos que “teimam” em não “completar” o que não temos a intimidade com aquelas figuras para ver, mas, que assustam, ao mesmo tempo, pelo pouco que se vê.

Mark Rylance, ator oscarizado, em cena de Até os Ossos

O filme toma cuidados que enriquecem o trabalho técnico da pós-produção enquanto aprofunda aquilo que são seus personagens. Para ficar apenas em um exemplo, a maneira como o design sonoro, principalmente nas cenas mais fechadas, insere ruídos dos zumbidos das moscas, ao mesmo tempo em que se mostra um detalhe aparentemente mínimo do roteiro e da pós, nos conta bastante sobre o estado daqueles personagens, dando uma amostra do tom de cuidado da produção como um todo.

Dessa forma, um dos maiores e mais complexos acertos de Até os Ossos é criar artifícios para que nos sensibilizemos com os rostos que vemos em tela. Afinal, são figuras que destoam daquele mundo e daquela sociedade. Maren e Lee são personagens que carecem do minimalismo social para encontrarem certa paz e tranquilidade, seja na fuga em um carro, seja na convivência familiar de tempos que não ousam durar.

Com Até os Ossos, Luca Guadagnino mostra que consegue mesclar seu próprio universo de gêneros cinematográficos. No longa-metragem, há tanto da singeleza e beleza de Me Chame Pelo Seu Nome (2017) como há certa verborragia gráfica e apavorante da sua recente refilmagem do clássico setentista Suspiria (2019).

Como as canções são essenciais para a tradução e o entendimento do que é Até os Ossos, encerro usando um trecho da música composta por Trent Reznor e Atticus Ross, que diz: Em um mundo que não é nosso / Em um lugar que não deveríamos estar / Por um minuto / Apenas um minuto / Fizemos com que nos sentíssemos em casa.

Nota
Geral
8.0
ate-os-ossosCom estilo e segurança na direção, Até os Ossos conta com um elenco afiado e competente em um filme difícil e complexo que consegue passear entre gêneros para descansar o espectador diante do turbilhão de sentimentos causados pela atmosfera visual e sonora do longa-metragem.