Eu e você somos Stanley. Só que eu já deixei de ser e posso depois voltar a ser Stanley. E você já foi e é Stanley. Ao mesmo tempo, nenhum de nós é ou já foi Stanley. Nem mesmo Stanley é a si próprio. E muitas vezes o é. O sentido da vida e as vidas sem sentido são temas recorrentes e que fascinarão jogadoras e jogadores que adentrarem no microcosmo tecnofinanceiro, capitalista e exploratório de Stanley Parable Ultra Deluxe.

A obra original, lançada em 2013, causou um merecido estardalhaço entre os fãs e crítica especializada ao optar sair de qualquer terreno convencional já explorado por um jogo. Muitos anos antes de Matrix Resurrections e a série Ruptura (Severance), a desenvolvedora Crows Crows Crows criou uma piada séria que também funciona como um profundo estudo de personagens. E dos jogadores!

Oferecendo um dos enredos mais profundos da história dos videojogos, a Parábola de Stanley é um jogo que pode ser terminado em 5 minutos e pode também ser constantemente jogado e finalizado por um período de dez ou mais horas, já que conta com múltiplos finais que estão se conectando e se completando a cada escolha que vai sendo feita.

Com uma multiplicidade de escolhas a se fazer, é certo que todo caminho levará o jogador para algum final. As portas, entradas e saídas que não foram utilizadas na primeira oportunidade, poderão ser utilizadas em um segundo ou posterior momento.
No jogo, que não oferece nenhum dos comandos básicos de 99% dos jogos, como pular, socar, chutar, arremessar ou atirar, o jogador pode apenas interagir com objetos e partes dos cenários pré-determinadas.

Era de se esperar que a falta de demais comandos deixasse o game repetitivo e enjoativo. Não é o que acontece porque há tantas e tão distintas camadas de roteiro que, mesmo que o jogador passe pelas mesmas salas uma centena de vezes, em quase todas as ocasiões haverão pequenas ou grandes diferenças de sala pra sala. Uma mesma ambientação pode ser replicada com sutis ou não tão sutis diferenças que instigam o jogador a perceber o que mudou, foi acrescido ou retirado daquele determinado ambiente.

O meu, o seu, o nosso e o protagonista de ninguém é Stanley, um personagem que quase não aparece e não possui nenhuma fala. Essa falta de entrosamento pessoal com Stanley não faz com que nos importemos mais com ele. Só que como muita coisa nesse jogo possui múltiplas camadas, não ter laços com Stanley é também uma das várias maneiras com as quais somos provocadas a estarmos na pele dele, ou ainda, não raramente, enxergarmos determinadas situações do game como momentos atuais ou passados das nossas vidas pessoais e/ou profissionais.


Na pele (ou não) de Stanley, somos apresentados a um empregado comum, daqueles que atuam dentro de pequenos cubículos dos escritórios com outras centenas de pessoas que ali fazem praticamente a mesma coisa. Se você procura uma descrição visual dos cubículos e do escritório, basta lembrar da cena em que Thomas Anderson, antes de ser tornar Neo, nos é apresentado em Matrix.

Stanley poderia, assim, se chamar também Thomas Anderson, só que sem tudo que envolve kung-fu e voar no ar, até porque, para além de interagir com certos objetos e partes do cenário, os únicos outros movimentos realizados por Stanley são o de andar e um outro raramente usado no gameplay do jogo: se abaixar.

Aqui, reforça-se: como a Crows Crows Crows investiu anos de trabalho para criar um sólido roteiro e as curiosas reviravoltas de Stanley Parable, nenhuma outra mecânica de ação, em absoluto, faz falta ao jogo.

Com segurança, é possível afirmar que a experiência narrativa oferecida aqui é das mais instigantes existentes em qualquer obra audiovisual. Muito já se falou sobre como Stanley Parable lembra o filme Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2010), ou, ainda mais atual, a série Ruptura/Severance (2022).

E sim, há semelhanças que podem ser trazidas ou levadas do jogo para o filme, para a série ou o caminho inverso. Entretanto, para esta análise, vou me permitir comparar Stanley Parable com duas obras que realmente desafiam o jogo dignamente. E começo falando do filme Primer, de 2004.

Primer é, sem dúvidas, algo que faz frente ao que vemos e jogamos em Stanley Parable porque, como o jogo, é também uma obra indie, feita por bem poucos envolvidos e que preza pela engenhosidade com a qual trata o seu roteiro ao mesmo tempo em que não entrega nada facilitado ao seu espectador, o que também acontece em Stanley, com os seus jogadores.

E já que anteriormente citei uma série atual que recebe(rá) comparações com o enredo básico de Stanley Parable, nada mais justo que voltar ainda mais atrás no tempo e trazer uma outra série: Além da Imaginação (The Twillight Zone, 1959-1964). Na série original, e que gestou alguns remakes nas últimas décadas, somos provocados a aceitar que o lado mais perturbador e curioso dos seres humanos pode ser aflorado, muitas vezes, por circunstâncias mínimas, ocasionando surpresas em como a humanidade consegue deturpar e trair qualquer traço de civilidade por pura ganância, desavença, medo, insensibilidade ou pela necessidade de mais poder.

Ao se jogar Stanley Parable, em diversos momentos, também vamos atestar que o tecido de civilidade é rasgado não apenas pelos fatores há pouco citados, como também por outros.

Ao se jogar pela primeira vez como um mero funcionário de um departamento/escritório qualquer, nenhum(a) jogador(a) seria minimamente capaz de imaginar o que há por trás de tudo que os poucos minutos ou as longas horas de Stanley Parable têm a oferecer. Diversão, curiosidade, certo receio do que virá, referências, pura psicodelia, críticas e muito mais são postas em tela quase que constantemente, seja pelo próprio decurso natural das salas pelas quais vai se passando e certas mensagens são percebidas, ou ainda pelos ácidos comentários de um narrador bastante presente e que traz também, com ele, sua nada mínima parcela de dúvidas, seu histrionismo ora jocoso e ora perigoso e também muitas (muitas e bem vindas) reflexões, que ajudam com que quem está no comando de Stanley consiga também organizar e montar esse quebra-cabeças que é, no melhor dos sentidos, o game.

À medida que se avança pelos ambientes do jogo, vai se notando que a intrincada história possui partes cada vez mais subdivididas e que necessitarão de alguns retornos, incrementos e até mesmo uma interação com o próprio console ou computador por parte de quem está jogando (Psycho Mantis, diretamente Metal Gear Solid, mandou lembranças).

Aproveitando o gancho da fala sobre um outro jogo, Stanley Parable “furta” toda a nossa capacidade de se adiantar aos clichês da própria indústria dos videogames no momento em que o próprio jogo, sem nenhum pudor, subverte ele mesmo todos os chavões, caminhos fáceis, intrigas, discussões e principais polêmicas da indústria dos games. Tudo isso é utilizado de forma a incrementar as situações que se apresentam durante o gameplay.

AS DIFERENÇAS ENTRE STANLEY PARABLE E STANLEY PARABLE ULTRA DELUXE.

Para escrever a análise, por cerca de dez horas cada, testei as duas versões do game: o original, de 2013, e sua versão Ultra Deluxe, lançada neste mês de maio de 2022. Como sabe-se, a versão Ultra Deluxe é a mesma versão do game anterior com valiosos incrementos. Sem spoilers, é preciso se afirmar que o subtítulo Ultra Deluxe não faz jus à nova versão. Não faz porque essa versão é positivamente maior e muito melhor do que poderíamos esperar. Prepare-se para ser surpreendido da melhor forma possível com o que será jogado.

Se você acredita que possam vir a ser apenas poucas adições, e que não compensaria o investimento financeiro na versão Ultra Deluxe, sugiro que você repense a situação e, havendo condições e interesse, dê uma chance ao conteúdo premium que você terá acesso pouco tempo depois (ou não) de iniciar suas novas desventuras no universo stanleyniano, pois ele, com toda a certeza que for possível se garantir algo, surpreenderá toda e qualquer pessoa, como foi lá em 2013, na ocasião da versão original e básica do jogo.

Falando ainda em novidades, ainda sem muito revelar, algo que a versão Ultra Deluxe também faz, tal como acontecia com a versão anterior, é sempre preparar algo novo para quem acha que possa estar já próximo de finalizar tudo que o game tem a oferecer. Aqui, como lá atrás, isso volta a acontecer. Por isso, se você acha que já explorou tudo do jogo, acredite, provavelmente ainda há muito por acontecer e ser descoberto.

Em termos gráficos a nova versão mantém a qualidade visual já demonstrada lá atrás. Em uma primeira olhada, não parecerá que estamos diante de um produto que saiu nove anos após o anterior. Digo em uma primeira olhada porque será preciso se jogar e explorar mais para ver certas belezas que não podem ser acessadas de imediato.

Ainda com relação às novas adições, quem jogou a versão de 2013 deve lembrar que o jogo trazia, por curtos, divertidos e interessantes instantes, cenários 100% fiéis de outros famosos jogos. Os momentos acontecem na versão Ultra Deluxe e, felizmente, há uma repaginada dos jogos que são mostrados.

A GRANDE REVELAÇÃO E POR QUE ESCONDERAM TÃO BEM? (ALERTA DE SPOILERS)

Minha cara leitora e meu caro leitor, a partir daqui, peço a licença de vocês. Não gostaria de deixar passar um momento tão oportuno sem discutir um dos principais aspectos da versão Ultra Deluxe de Stanley Parable. Justamente por isso, a contar deste parágrafo em diante, o texto conterá spoilers da versão Ultra Deluxe.

Sendo assim, para começar com o mais escondido e profundo dos spoilers do game, vamos retirar o elefante branco da sala: Stanley Parable Ultra Deluxe esconde, simplesmente, além do conteúdo bônus, de um maravilhoso tour por uma press-conference e um soberbo epílogo… Stanley Parable 2! Sim, há a continuação dentro de algo que foi vendido como um mero upgrade para o game de 2013. Durante o tempo inteiro, estamos dentro do que é o segundo jogo, mas que está e foi disfarçado como se fosse apenas o primeiro repaginado.

E se você ama o primeiro jogo, certamente a continuação também lhe encantará. Não satisfeitos em criar edifícios nas cabeças dos jogadores em 2013, o novo jogo lhe desafiará ainda mais, pois, por camadas, ele vai apresentando a si próprio ao jogador enquanto estamos apenas navegando por conteúdos que achamos que são meramente alguns curtos bônus. No meio tempo, sala por sala, vamos entrando e saindo de portas, ambientes muito maiores e situações surrealisticamente mais complexas.

Considero o fato de terem escondido que se tratava de uma continuação como algo arriscado e genial. É claro que a partir das críticas lançadas e opiniões nas redes sociais, será mais difícil esconder que é uma continuação. Mesmo assim, a decisão de maquiar o segundo por trás do que foi propagandeado e vendido, ou seja, um upgrade generoso do primeiro jogo, é das decisões mais corajosas já vistas não apenas na indústria dos games, mas na indústria cultural em geral.

A experiência de descobrir, in-game, que se trata de uma continuação, é das decisões mais perspicazes, inteligentes, arrojadas e, novamente, arriscadas que poderia existir. De outra maneira, talvez não houvesse condições para surpreender o jogador em termos de forma antes mesmo de conteúdo, que é isso que Stanley Parable 2 brilhantemente faz. O impacto que é causado aqui faz com que o jogador, de forma natural, torne-se ainda mais atento e sedento pelo que há de vir no próprio jogo, mediante as surpresas que vão sendo descobertas após o encerramento do jogo original, que também está contido em Stanley Parable 2.

Nota
PONTUAÇÃO GERAL
10
stanley-parable-e-a-melhor-surpresa-de-2022-descubra-em-nossa-analiseSuperar uma obra-prima que causou estrondo positivo quando do seu lançamento era uma tarefa árdua. Contudo, o trabalho de evolução da narrativa e o incremento dos desafios e propostas que a Crows Crows Crows traz para Stanley Parable Ultra Deluxe o coloca não apenas como uma aquisição indispensável para quem jogou a versão de 2013, como também uma obra essencial para os apreciadores dos videogames e que, desde já, figura como um dos jogos favoritos do ano.