Existe um tipo específico de pesadelo que só a cultura corporativa moderna consegue engendrar. É um lugar onde a busca incessante por engajamento se encontra com a total ausência de bom senso, resultando em algo tão bizarramente cativante quanto repulsivo. É nesse território febril que King of Meat planta sua bandeira ensanguentada. Imagine um universo onde a fantasia medieval, com seus dragões, esqueletos e masmorras, não foi descoberta por heróis de armadura reluzente, mas sim por executivos de marketing com planilhas e um apetite insaciável por monetização. O resultado é o “Komstruct Koliseum”, o palco do game show mais violento e popular do reino de Loregok, um espetáculo de sobrevivência transmitido para as massas sedentas por pão, circo e, aparentemente, muita, muita carne.
Essa premissa, por si só, já é uma faca de dois gumes. De um lado, há a promessa de uma sátira afiada, um comentário mordaz sobre a nossa própria cultura de celebridades, influenciadores e a espetacularização de absolutamente tudo. Por outro, existe o perigo iminente de se tornar aquilo que critica: uma coleção de piadas fáceis, “memes rançosos” e um humor pastelão que se esgota antes mesmo da primeira vinheta comercial. A questão que paira sobre King of Meat como uma lâmina de guilhotina é se ele consegue ser mais do que a soma de suas referências. Será que por baixo de toda essa camada de ironia e autoconsciência existe um jogo sólido, ou estamos apenas assistindo a uma piada que se estende por horas a fio? A resposta, como descobri, é tão complexa e contraditória quanto o próprio mundo do jogo. Este não é apenas um game show dentro de um jogo; o próprio jogo é um comentário sobre a natureza dos “serviços ao vivo” que dominam a indústria. A busca por fama, ouro e cosméticos dentro de Loregok é um espelho perfeito da nossa própria busca como jogadores, repetindo atividades para exibir nossas conquistas em um hub social. King of Meat nos coloca no palco, mas a piada, talvez, seja sobre nós.
O Sabor da Fama (e da Frustração)
Minha jornada para me tornar o Rei da Carne começou de forma melancólica. Sozinho. Eu, meu avatar customizado, e o silêncio constrangedor de um hub social povoado por NPCs. As primeiras masmorras foram… funcionais. Eu derrotei esqueletos, desviei de armadilhas, resolvi quebra-cabeças. Cumpri os objetivos, coletei o ouro, vi minha barra de “fama” subir. E senti um vazio profundo. A experiência solo em King of Meat não é apenas fraca; ela se sente fundamentalmente errada, como assistir a uma comédia de improviso sem plateia. As piadas não têm graça, os momentos de caos parecem roteirizados e a estrutura repetitiva do jogo se revela em sua forma mais crua e desinteressante. É um esqueleto de jogo, uma prova de conceito que mostra o que poderia ser divertido, se ao menos houvesse mais alguém ali para testemunhar.
Então, meus amigos entraram. E o jogo se transformou.
O momento em que o primeiro companheiro de esquadrão se materializou no Ironlaw Plaza foi como a chegada da cor em um filme em preto e branco. O silêncio foi substituído por gritos no Discord. A precisão calculada deu lugar a um pandemônio glorioso. De repente, a masmorra que antes era uma tarefa se tornou um palco para o nosso próprio show de horrores cômico. Aquele quebra-cabeça simples de pisar em placas de pressão se transformou em uma cena de Os Três Patetas, com acusações, sabotagens acidentais e um amigo que, juro por Deus, parecia incapaz de entender o conceito de “ficar parado”. A frustração que senti sozinho se metamorfoseou em gargalhadas coletivas. Nós não estávamos apenas jogando; estávamos criando memórias.
É aqui que a genialidade e a maior falha de King of Meat residem. O jogo não foi projetado para ser um produto completo e auto-suficiente. Ele é, em sua essência, um kit de ferramentas sociais. A diversão não está embutida nas mecânicas, mas sim na interação que elas provocam. A Glowmade construiu deliberadamente uma experiência que é incompleta por si só, apostando tudo na química entre os jogadores para preencher as lacunas. Quando funciona, é mágico. É a alegria pura de ver um amigo ser esmagado por um martelo gigante pela quinta vez, ou a satisfação de coordenar um ataque perfeito contra um chefe, comunicando-se apenas por pings e emotes. Nesses momentos, King of Meat se torna um dos melhores jogos cooperativos que já joguei, uma máquina infalível de gerar risadas e camaradagem.
Mas essa dependência total da experiência social é uma aposta arriscadíssima, especialmente para um título que não é gratuito. O valor que você extrai de King of Meat é diretamente proporcional à sua capacidade de reunir um grupo de amigos dispostos a embarcar nessa loucura. Sem eles, você não está comprando um jogo, mas sim o ingresso para uma festa à qual ninguém mais compareceu.
A Dança das Lâminas e dos Saltos Mal Calculados
Se dissecarmos a anatomia de King of Meat, encontramos uma criatura de duas naturezas distintas, uma musculosa e bem definida, a outra um tanto quanto flácida e desajeitada. A primeira, para meu alívio e surpresa, é o combate. Longe de ser um mero esmagar de botões, o sistema de luta tem uma profundidade inesperada. Cada classe de arma, da clássica espada e escudo aos martelos lentos e devastadores, passando pelas ágeis manoplas arcanas e uma variedade de armas de longo alcance, possui um peso e um ritmo próprios. Encaixar combos, desviar no último segundo e gerenciar o tempo de recarga das suas habilidades é genuinamente satisfatório. O combate é polido, responsivo e visualmente espetacular, especialmente quando você libera um “Glory Move”. Invocar um casco de cavalo gigante dos céus para esmagar seus inimigos ou lançar um pato de borracha que explode em dezenas de outros patos explosivos nunca perde a graça e reforça perfeitamente a temática de game show.
Infelizmente, a segunda natureza desta criatura mecânica é a sua movimentação e, especificamente, o plataforming. E aqui, a palavra que me vem à mente é “frustrante”. Para um jogo que se deleita no caos e na velocidade, a movimentação do personagem é dolorosamente lenta e imprecisa. O pulo é flutuante, a corrida parece acontecer debaixo d’água e a sensação de controle simplesmente não está lá. Em masmorras focadas em combate, isso é um problema menor. Mas quando o jogo exige sequências de saltos precisos sobre poços de espinhos ou plataformas móveis, a experiência desmorona. As mortes parecem injustas, causadas não pela dificuldade do desafio, mas pela inadequação das ferramentas que o jogo me deu. É um conflito gritante no coração do design: um sistema de combate rápido e ágil acoplado a um sistema de plataforma lento e desajeitado. É como tentar correr uma maratona usando botas de esqui; você pode até chegar ao final, mas o processo será desconfortável e desengonçado.
No entanto, há um terceiro pilar mecânico que sustenta todo o edifício, e é tão robusto que quase compensa as falhas do plataforming: o Modo de Criação. Este não é apenas um recurso adicional; é a alma de King of Meat. Herdando o DNA de LittleBigPlanet, a Glowmade entregou um conjunto de ferramentas de criação de masmorras que é, ao mesmo tempo, incrivelmente poderoso e surpreendentemente acessível. O fato de que os jogadores têm acesso às mesmas ferramentas que os desenvolvedores usaram para criar as mais de 100 masmorras do lançamento é uma promessa de longevidade quase infinita. Em questão de minutos, eu estava montando salas, posicionando armadilhas, criando lógicas de quebra-cabeças e populando meu pequeno inferno pessoal com hordas de esqueletos. A interface é intuitiva, e a capacidade de pular instantaneamente para o modo de teste para ver sua criação em ação é um golpe de gênio. É aqui que o futuro do jogo reside. Não nas masmorras pré-fabricadas, mas na criatividade doentia e ilimitada de sua comunidade.
Um Circo de Neón e Piadas de Tiozão
Esteticamente, King of Meat é um assalto aos sentidos, no melhor sentido possível. A direção de arte é uma fusão vibrante de um desenho animado de sábado de manhã com uma distopia cyberpunk. O mundo de Loregok é banhado em cores saturadas e luzes de neon, onde castelos medievais são adornados com outdoors digitais e logotipos corporativos. As animações dos personagens são expressivas e fluidas, e o design dos inimigos, embora não seja vasto, é distinto e cheio de personalidade. É um banquete visual que consegue ser simultaneamente charmoso e grotesco, capturando perfeitamente o tom de uma sociedade que transformou a carnificina em entretenimento familiar.
O design de som trabalha em perfeita harmonia com o visual para vender essa fantasia. A interface do jogo imita uma sobreposição de transmissão de TV, completa com um medidor de “hype” da audiência. Durante as masmorras, comentaristas narram suas façanhas com um entusiasmo maníaco, e os aplausos e vaias da multidão aumentam e diminuem com base no seu desempenho. Cada golpe, explosão e tesouro coletado é acompanhado por efeitos sonoros crocantes e satisfatórios que transformam a jogabilidade em uma sinfonia de caos. No hub social, o Ironlaw Plaza, os NPCs são totalmente dublados, cada um com uma personalidade excêntrica que contribui para a construção deste mundo bizarro.
E isso nos leva ao humor, o elemento mais divisivo do pacote. A escrita de King of Meat opera em um nível de piadas de pai, trocadilhos infames e humor pastelão que faria um roteirista de sitcom dos anos 90 corar. Inimigos explodem em bifes suculentos, uma das armas é um martelo de salsicha e os diálogos são repletos de um tipo de autoconsciência que beira o irritante. Confesso: em vários momentos, eu ri. Ri da estupidez de tudo aquilo, do compromisso inabalável do jogo com a sua própria bobagem. Mas entendo perfeitamente por que muitos podem achar isso insuportável. O humor é, por vezes, forçado e a sátira, desdentada.
Contudo, quanto mais eu jogava, mais eu percebia que esse humor “ruim” talvez fosse intencional e, de certa forma, genial. Ele reflete a tentativa das corporações dentro do jogo de higienizar e empacotar a violência extrema para consumo em massa. Os trocadilhos terríveis não são para nós, os jogadores; são a propaganda dentro do universo que torna o “King of Meat” um programa de TV de sucesso. É o som de um departamento de marketing tentando desesperadamente colocar um rosto amigável e engraçadinho em algo fundamentalmente horrível. A sátira funciona não apesar do humor bobo, mas por causa dele.
A Máquina por Trás do Abate
Chegamos ao momento da verdade para qualquer jogo de PC que se preze: o teste de estresse técnico. Armado com meu equipamento de batalha, um processador Ryzen 7 5700x, uma placa de vídeo RTX 4060 e 32 GB de RAMm mergulhei nas entranhas gráficas de King of Meat para ver se a máquina por trás do abate aguentava o tranco. E a resposta, em suma, é um retumbante “sim”.
A Glowmade prometeu que seu principal objetivo era que “o jogo não travasse”, e, na minha experiência com a versão de lançamento, eles cumpriram a promessa. O jogo é notavelmente estável e polido, uma base sólida que é absolutamente crucial para uma experiência que dependerá tanto do conteúdo imprevisível gerado pelos usuários.
No que diz respeito às opções gráficas, King of Meat oferece um conjunto padrão, mas robusto, de configurações. Temos os suspeitos de sempre: qualidade de texturas, sombras, anti-aliasing, oclusão de ambiente e distância de renderização. Para uma máquina como a minha, o jogo é um passeio no parque. Em resolução de 1080p, com todas as configurações no “Ultra”, a taxa de quadros permaneceu cravada em 60 fps, e por algum motivo, não consegui aumentar. sem suar, proporcionando uma experiência incrivelmente fluida e responsiva. O combate ágil e o caos visual se beneficiam imensamente dessa performance.
O Rei Está Morto. Viva o Rei?
Ao final da minha jornada sangrenta e hilária por Loregok, uma verdade se tornou cristalina: King of Meat é um paradoxo glorioso. É um jogo que eu adorei e detestei, muitas vezes no mesmo minuto. É uma obra-prima de design social que falha miseravelmente como uma experiência solitária. Possui um dos sistemas de combate mais divertidos e satisfatórios que encontrei em um jogo cooperativo recente, acoplado a um sistema de plataforma que parece ter sido projetado para testar a paciência de um santo. É brilhante e quebrado, genial e frustrante, tudo ao mesmo tempo.
A recomendação, portanto, não é simples. Se você é um lobo solitário em busca de uma masmorra para conquistar, passe longe. Este banquete não foi preparado para você, e a carne servida será fria e sem sabor. No entanto, se você tem um grupo de amigos, um esquadrão de idiotas dispostos a rir da própria desgraça, a gritar uns com os outros por causa de um baú perdido e a celebrar vitórias improváveis em meio a uma chuva de patos de borracha explosivos, então, por favor, entre. A festa é para vocês, e é espetacular.
No fim das contas, o futuro de King of Meat não está nas mãos de seus criadores. As mais de cem masmorras que vêm com o jogo são apenas o aperitivo; elas se tornarão repetitivas. O verdadeiro prato principal será cozinhado, temperado e servido pela comunidade. Comprar King of Meat não é adquirir um produto acabado. É fazer um investimento. É uma aposta na criatividade, na engenhosidade e na capacidade de outros jogadores de pegar essas ferramentas fantásticas e construir algo duradouro.
A Glowmade não nos entregou um banquete real, perfeitamente preparado e servido em uma bandeja de prata. Em vez disso, eles construíram a cozinha mais moderna e bem equipada que se possa imaginar, abriram as portas e entregaram as chaves ao público, dizendo: “Divirtam-se”. Se o resultado será uma série de obras-primas culinárias ou um incêndio de proporções épicas, só o tempo dirá. Mas, caramba, eu mal posso esperar para provar o que quer que saia de lá.