Eu me lembro de 2016. Lembro do dia em que instalei Blade & Soul pela primeira vez e senti algo que não sentia há anos no paralisado mundo dos MMORPGs: surpresa. O combate não era uma tediosa rotação de habilidades em alvos estáticos; era uma dança. Um balé de artes marciais, com parries, esquivas e combos aéreos que pareciam saídos de um filme de Zhang Yimou. Era uma lufada de ar fresco em um quarto mofado. Mas, como em todo romance de verão, a paixão inicial deu lugar à dura realidade. Aquele combate genial estava enterrado sob uma montanha de missões banais, um endgame que era um sinônimo glorificado de “rotina” e um sistema de progressão que parecia projetado em um laboratório para testar os limites da paciência humana. A lâmina era afiada, mas a alma, com o tempo, sentia-se vazia.
Agora, em 2025, a NCSOFT, essa entidade quase mitológica do panteão dos videogames – famosa tanto por criar mundos quanto por ordenhá-los até a secura – decide revisitar seu clássico. Mas em vez de uma simples demão de tinta, eles chegam com uma proposta que beira a heresia: Blade & Soul Heroes, uma sequência exclusiva para PC, reconstruída do zero em uma perspectiva de primeira pessoa. É uma decisão tão audaciosa quanto arrancar as asas de um dragão para ver se ele aprende a nadar. Eles pegaram a única coisa universalmente aclamada do original – sua coreografia em terceira pessoa – e a jogaram pela janela. A pergunta que paira no ar, pesada como uma promessa não cumprida, não é se o jogo é bom. É se, ao tentar encontrar uma nova identidade, ele não perdeu de vez a alma que o nome carrega.
O Eco da Vingança
A cortina se abre e o palco é familiar. Meu clã, minha família, dizimado. Uma figura enigmática e poderosa, Yi Chun, deixa um rastro de cinzas e um desejo ardente de vingança em meu peito. Eu sou Yusol, a última sobrevivente, e minha jornada é um eco quase perfeito daquela que trilhei anos atrás, na sombra da infame Jinsoyun. A NCSOFT não parece interessada em reinventar a roda narrativa; a vingança ainda é o motor que move este universo. A diferença, e que diferença faz, é a perspectiva.
Estar em primeira pessoa deveria, em tese, criar uma conexão mais íntima. E, por vezes, funciona. Quando um membro da raça Lyn, com suas orelhas felpudas e estatura diminuta, olha para cima para falar comigo, há um senso de escala e presença que a câmera distante do original jamais capturou. O problema é que essa intimidade é uma faca de dois gumes. Ela coloca em primeiro plano a maior fraqueza da franquia: a artificialidade de seu mundo. Os NPCs, embora visualmente mais detalhados que os bonecos de PlayStation 2 do primeiro jogo, ainda são estátuas falantes. Eles entregam suas tragédias pessoais com a mesma inflexão emocional de quem lê uma lista de compras, e a câmera na cara só amplifica a sensação de estar em um parque temático caro, e não em um mundo vivo.
Essa dissonância atinge o ápice no design de missões. A promessa de imersão da primeira pessoa se estilhaça contra a realidade de ser, mais uma vez, o “garoto(a) de recados do apocalipse”. “Mate dez lobos”, “colete cinco ervas”, “fale com aquele sujeito parado a duzentos metros de distância”. Em terceira pessoa, essa estrutura é tolerável; é a gramática padrão dos MMOs. Em primeira pessoa, ela se torna um insulto à inteligência. A perspectiva que deveria me fazer sentir como o protagonista de uma saga épica acaba por me fazer sentir como um funcionário mal pago cumprindo tarefas absurdas. A história tenta tecer um drama de traição e poder, mas seus fios são os mesmos de sempre, e a proximidade da câmera só revela o quão gastos eles estão.
A Dança Cega
E então, eu entro em combate. E tudo muda. O medo de que a transição para a primeira pessoa transformasse a dança graciosa do original em uma briga de bar caótica se dissipa no primeiro parry. A NCSOFT realizou aqui um pequeno milagre técnico. O combate de Blade & Soul Heroes não é apenas funcional; ele é visceral, tátil e absolutamente eletrizante.
Desviar de um golpe de espada no último segundo, sentindo o “whoosh” da lâmina passar rente ao meu rosto, e responder com um combo fluido de chutes e cortes é uma das experiências mais satisfatórias que já tive em um RPG. As classes foram reimaginadas com um cuidado notável para a nova perspectiva. Como um Mestre das Lâminas, o bloqueio não é um botão passivo, é um ato físico de levantar a espada e absorver o impacto, com um “CLANG” metálico que reverbera pelos fones de ouvido. Como um Mestre da Força, as magias não são apenas ícones que saem da tela; elas se formam em minhas mãos, crepitando com energia antes de serem disparadas com um recuo que sacode a câmera.
Contudo, essa dança agora tem uma venda nos olhos. A perda de consciência situacional é o preço inevitável dessa imersão. Lutar contra um único inimigo é uma delícia. Contra dois, é um desafio. Contra três ou mais, torna-se um exercício de pânico e adivinhação. O jogo tenta mitigar isso com excelentes pistas de áudio – grunhidos e sons de passos que indicam um ataque pelas costas –, mas a verdade é que a coreografia de multidões, um dos pilares do Blade & Soul original, foi sacrificada. A fantasia de poder de ser um mestre de wuxia invencível é constantemente quebrada por um inimigo sorrateiro que me ataca fora do campo de visão.
Os Fios da Marionete
Se o combate é onde a paixão e a arte dos desenvolvedores brilham, as mecânicas de progressão são onde a mão fria e calculista da corporação se revela. Aqui, Blade & Soul Heroes não apenas repete os erros de seu predecessor, mas os abraça com o fervor de um converso. A jornada para se tornar mais forte não é uma aventura, é uma planilha. O ciclo é implacável: complete missões diárias para ganhar uma moeda, use essa moeda para entrar em masmorras, complete as masmorras para ter uma chance de obter um material, e use esse material para ter uma chance de aprimorar seu equipamento.
Cada passo dessa escada é meticulosamente projetado para gerar atrito. As taxas de sucesso dos aprimoramentos começam altas e despencam vertiginosamente. Os recursos são escassos. O tempo é limitado por sistemas de “energia” ou “entradas diárias”. É um sistema que não respeita o jogador; ele o vê como um recurso a ser explorado. E, convenientemente, para cada parede de frustração que o jogo ergue, a loja de dinheiro real oferece uma porta dourada.
A loja de Heroes é uma obra-prima do design predatório, um catálogo de soluções para problemas que o próprio jogo criou. Faltam materiais? Compre um baú. A taxa de aprimoramento é baixa? Compre um item que a aumenta. Não tem tempo para as missões diárias? Compre um passe de batalha que acelera tudo. É a filosofia do “frustrar e depois vender” em sua forma mais pura. O combate genial serve como isca, o gancho que te prende ao jogo e te faz querer progredir. As mecânicas de progressão são a armadilha, projetada para tornar essa progressão tão tediosa que a opção de abrir a carteira começa a parecer não apenas tentadora, mas lógica. É um ciclo cínico que mancha cada momento de triunfo genuíno, deixando um gosto amargo de que sua conquista talvez não tenha sido inteiramente sua.
Um Mundo de Seda e Silício
Visualmente, Blade & Soul Heroes é um espetáculo de contrastes. Construído sobre o que parece ser uma versão avançada da Unreal Engine, o jogo consegue, em seus melhores momentos, ser de uma beleza estonteante. Ver o sol nascer sobre as Montanhas Celestiais, com seus picos nevados e arquitetura de inspiração oriental, é de tirar o fôlego. As florestas são densas e atmosféricas, e as masmorras gotejam com um detalhe que a perspectiva em primeira pessoa permite apreciar plenamente. A direção de arte, que sempre foi um ponto forte da franquia, foi transportada com sucesso para a nova geração.
O problema, mais uma vez, é a inconsistência. A imersão é quebrada no momento em que você percebe a disparidade de qualidade entre os diferentes elementos visuais. Minhas mãos, minhas armas, as animações de minhas habilidades – tudo que está permanentemente em meu campo de visão é renderizado com uma fidelidade quase fotográfica. É claramente onde a maior parte do orçamento de arte foi gasta. O mundo ao redor, no entanto, nem sempre acompanha. Texturas de baixa resolução em rochas, folhagens que parecem de papelão e, principalmente, modelos de NPCs que, embora melhores, ainda carecem da mesma atenção ao detalhe, criam uma desconexão constante. É como assistir a um filme de alta produção onde o ator principal está em 4K e os coadjuvantes em 480p.
A paisagem sonora, por outro lado, é impecável. A trilha sonora orquestral é grandiosa e evocativa, misturando temas épicos com melodias melancólicas que se encaixam perfeitamente em cada região. O design de som do combate, como mencionado, é um dos melhores do gênero, dando peso e impacto a cada ação. A dublagem, no entanto, é apenas funcional, raramente elevando o material escrito e, por vezes, caindo na armadilha da canastrice que torna difícil levar o drama a sério. É um mundo que parece incrível em capturas de tela, mas cuja fachada de seda se desfaz sob o escrutínio do silício.
O Fantasma na Máquina
Minha máquina de guerra pessoal – um Ryzen 7 5700X, uma RTX 4060 e 32 GB de RAM – enfrentou o mundo de Blade & Soul Heroes com uma competência admirável, mas não sem exigir alguns sacrifícios ao altar da tecnologia. Este é um jogo exigente, um verdadeiro produto de 2025, e a ideia de rodá-lo em resolução nativa com tudo no máximo é um sonho distante para uma placa como a 4060. O jogo é estável, com poucos bugs ou crashes, mas sua otimização parece depender fortemente das tecnologias de upscaling da Nvidia. Isso cria uma experiência fragmentada, onde quem possui o hardware mais recente tem acesso ao jogo como ele foi “feito para ser jogado”, enquanto os outros se contentam com uma versão comprometida.
A Cicatriz que Permanece
Então, o que é Blade & Soul Heroes? É a reinvenção ousada que a franquia precisava? Ou é apenas mais um produto belamente embalado saído da linha de montagem da NCSOFT, projetado para extrair paixão e dinheiro em igual medida? A resposta, frustrantemente, é ambos.
A decisão de mudar para a primeira pessoa não foi um erro. O combate que nasceu dessa aposta é um triunfo, uma prova de que ainda há espaço para inovação genuína em um gênero estagnado. É rápido, brutal e imensamente gratificante. Em seus melhores momentos, Blade & Soul Heroes me fez sentir como o maior espadachim do mundo, um herói de lenda. Mas a lenda está acorrentada. Acorrentada a um design de missões arcaico, a uma história que é um fantasma de si mesma e, acima de tudo, a um ecossistema de monetização tão predatório que lança uma sombra sobre cada conquista.
Jogá-lo é como apreciar a performance de um violinista virtuoso que é forçado a tocar em uma praça imunda para um mestre ganancioso que recolhe todas as moedas. A beleza da música é inegável, a habilidade é de tirar o fôlego, mas você não consegue ignorar o contexto deprimente. A genialidade do combate não redime as falhas do jogo; ela as torna mais trágicas. Cada momento de brilho serve apenas para iluminar a escuridão cínica que o rodeia.
Blade & Soul Heroes não é um jogo que você vai odiar. É um jogo que vai partir seu coração. Ele oferece um vislumbre de um futuro incrível para os RPGs de ação, apenas para puxá-lo de volta para o presente sombrio dos modelos de negócios que veem jogadores não como um público, mas como uma colheita. Ele não deixa raiva, apenas uma melancolia, a dor fantasma de um membro que poderia ter existido. É uma obra-prima quebrada, uma bela falha. E essa, talvez, seja a cicatriz mais profunda de todas.