Existe uma categoria muito particular de arte que não busca agradar, mas sim provocar. Ela não nos oferece um refúgio, mas um espelho. Ela não nos conforta, mas nos confronta com nossas próprias limitações, nossa teimosia e, se tivermos sorte, com uma fagulha de autoconhecimento. Baby Steps, a mais recente peça de tortura filosófica concebida pelas mentes diabólicas de Bennett Foddy, Gabe Cuzzillo e Maxi Boch, pertence a essa estirpe. Ao entrar no Baby Steps e me preparar para o que eu sabia ser uma provação, eu não estava em busca de diversão no sentido convencional. Eu estava aceitando um convite para a queda.
Vindo da linhagem de clássicos do masoquismo digital como QWOP e Getting Over It, Baby Steps se apresenta com uma simplicidade enganosa: você é Nate, um homem que precisa subir uma montanha. É isso. A pegadinha, o veneno na ponta da flecha, é que o jogo desconstrói o ato mais fundamental de qualquer videogame desde que os avatares deixaram de ser meros pontos na tela: andar. Cada passo é uma operação manual, uma negociação precária com a gravidade. O jogo se autodenomina um “simulador de caminhada literal”, mas essa é apenas a primeira de suas muitas ironias. Na verdade, ele é um simulador de alpinismo, um quebra-cabeças de física e, acima de tudo, uma sátira brutal da grandiosidade dos jogos de mundo aberto.
Os criadores o descrevem, com uma precisão cirúrgica, como um “AAA cosplay”. Ele pega a escala de um Death Stranding, uma clara inspiração, e a vastidão de um mundo que clama por exploração, mas em vez de nos dar um mapa, uma viagem rápida ou controles que respondem ao pensamento, ele nos dá o controle manual sobre duas pernas desajeitadas. Essa justaposição é o cerne da sua genialidade. Ao transformar a travessia no principal obstáculo, Baby Steps nos força a questionar o que realmente valorizamos na exploração virtual. A alegria está em chegar ao topo da montanha ou na jornada árdua, desajeitada e dolorosamente cômica para chegar lá? Depois de mais de 25 horas e 70.000 passos cambaleantes, eu ainda não tenho certeza da resposta, mas a pergunta mudou a forma como eu olho para cada passo que dou, dentro e fora da tela.
O Fardo de Ser Nate
Vamos direto ao ponto: eu não suporto o Nate. Desde a primeira cena, um ranço profundo e visceral se instalou em mim, um sentimento que só se intensificou a cada interação patética, a cada resmungo covarde. Nate não é um protagonista; ele é um obstáculo. Ele é a personificação da inércia, um “failson” de 35 anos, desempregado, que vive no porão dos pais, afundado em um sofá que já tem o formato do seu corpo. Quando ele é magicamente transportado para este mundo bizarro, sua principal motivação não é a sobrevivência ou a descoberta, mas a necessidade urgente de encontrar um banheiro.
As cutscenes, que deveriam ser um alívio da tensão da jogabilidade, são, na verdade, extensões dela. São interlúdios de um sonho febril, povoados por criaturas surreais como homens-burro seminus com sotaques australianos pesados. O diálogo parece quase inteiramente improvisado, com os dubladores mal conseguindo conter o riso, quebrando a quarta parede de uma forma que só aumenta a sensação de absurdo e comédia de constrangimento. É um humor que testa limites, que muitas vezes flerta com o mau gosto e a vulgaridade gratuita, mas que se encaixa perfeitamente no tom geral de desconforto do jogo.
O que torna Nate verdadeiramente insuportável, no entanto, é sua incapacidade patológica de aceitar ajuda. No início da jornada, um personagem oferece a ele um par de sapatos. Ele recusa. Outro oferece um mapa. Ele recusa. Um terceiro oferece equipamento de escalada. Ele recusa. Cada recusa é um tapa na cara do jogador. Sou eu quem está descalço, sou eu quem está perdido, sou eu quem precisa escalar. A teimosia dele é uma barreira ativa ao meu progresso. Eu me vi gritando com a tela, implorando para que aquele homem-criança engolisse seu orgulho e aceitasse a maldita ajuda. Mas ele nunca o faz. Sua ansiedade social e sua fachada de autossuficiência masculina o impedem, e eu sou forçado a carregar o fardo de suas inseguranças a cada passo doloroso.
Foi então, em um momento de pura frustração, que a verdade me atingiu como uma avalanche. O problema não era o Nate. O problema era eu. Nate é o “batata de sofá”, o nerd despreparado que, na maioria dos jogos, controla o herói supercompetente como um Nathan Drake. Baby Steps colapsa essa fantasia. O avatar na tela é a caricatura do jogador em sua forma mais estereotipada. Minha raiva pela recusa dele em aceitar um mapa era profundamente hipócrita. Afinal, eu, ao persistir em um “rage game” notoriamente difícil, também estava me recusando a “pedir ajuda”, a desistir, a procurar um guia, a jogar algo mais fácil. O ranço que eu sentia por Nate era, na verdade, o desconforto de me ver naquele espelho distorcido. Ele é a personificação da minha própria teimosia, do meu orgulho de jogador que se recusa a admitir a derrota. Odiar Nate é parte fundamental da experiência, porque a história de Baby Steps não é sobre ele. É sobre nós.
A Dança dos Tropeços
A jornada para dominar o simples ato de andar em Baby Steps é uma montanha-russa emocional, um ciclo de amor e ódio que pode se repetir várias vezes em um intervalo de dez minutos. Minha experiência pode ser dividida em quatro estágios distintos de agonia e êxtase.
O primeiro estágio é o caos inicial. Os primeiros minutos são um balé de quedas humilhantes. Cada comando parece contra-intuitivo. Pressionar o gatilho direito para levantar a perna direita, usar o analógico para posicioná-la e então soltar o gatilho para plantá-la no chão. Parece simples, mas a física do jogo transforma cada passo em um desastre em potencial. Uma pequena pedra se torna um obstáculo intransponível. Um leve declive, uma armadilha mortal. Nate desaba no chão como um saco de batatas, e a câmera, muitas vezes, parece conspirar contra você, ocultando o ponto exato onde seu pé precisa pousar, tornando a precisão um exercício de adivinhação.
Então, vem o segundo estágio: a epifania rítmica. De repente, algo clica. Em questão de minutos, como num passe de mágica, eu peguei o jeito. A caminhada deixa de ser uma série de comandos discretos e se torna um fluxo contínuo, um ritmo. Esquerda, direita, esquerda, direita. O movimento se torna quase meditativo. A sensação de conseguir andar por minutos a fio sem cair é uma das primeiras e mais puras alegrias que o jogo oferece. Você se sente um mestre, um virtuoso do andar.
Essa confiança é brutalmente destruída no terceiro estágio: a parede da escalada. O jogo revela sua verdadeira natureza. Ele não é um simulador de caminhada; é um jogo de alpinismo disfarçado. As habilidades que você desenvolveu em terreno plano são quase inúteis em encostas íngremes, areia escorregadia ou vigas de madeira estreitas. A dificuldade aumenta exponencialmente. Cada subida é um quebra-cabeças complexo que exige um novo entendimento de equilíbrio, momentum e posicionamento. É aqui que a verdadeira frustração se instala. Uma queda não significa apenas recomeçar a subida, mas deslizar por um longo e humilhante escorregador de lama, perdendo minutos, às vezes horas, de progresso.
Mas se você persistir, se você suportar a dor e a humilhação, você alcançará o quarto e último estágio: o domínio sofrido. Após horas de tentativa e erro, você finalmente conquista aquela subida que parecia impossível. A tensão é palpável; eu senti minhas mãos suando no controle, meu coração batendo mais forte. E a euforia que se segue à vitória é indescritível. É uma sensação de realização que poucos jogos conseguem proporcionar, precisamente porque ela é conquistada com tanto esforço.
O que impede que essa frustração se torne insuportável é o design de mundo semi-aberto do jogo. Diferente de Getting Over It, que canaliza toda a sua raiva em um caminho linear, Baby Steps oferece válvulas de escape. Se uma rota se prova difícil demais, quase sempre há um caminho alternativo. Se uma queda o deixa à beira de um colapso nervoso, você pode simplesmente se afastar, caminhar por uma área plana e tranquila, e respirar. O mundo aberto não é apenas um cenário; é a principal mecânica de equilíbrio do jogo. Ele permite que você gerencie sua própria frustração, que escolha seu próprio nível de sofrimento, transformando o que poderia ser uma experiência cruel em uma jornada desafiadora, mas, em última análise, justa.
O Fantasma no Controle
O verdadeiro antagonista, no entanto, é o motor de física do jogo. Ele é seu professor e seu carrasco. É impiedoso, mas, crucialmente, é consistente. Cada queda, por mais devastadora que seja, é uma lição sobre centro de gravidade, distribuição de peso e momentum. O jogo força você a desenvolver uma intuição física, um sexto sentido para os movimentos desajeitados de Nate. O sistema de “ragdoll”, que se ativa no instante em que o equilíbrio é perdido, envia seu corpo mole para quedas longas e punitivas, enquanto o “sistema de sujeira dinâmico do macacão” serve como um registro cômico e patético de seus fracassos, a cada mancha de lama acumulada.
A ausência de um mapa, de viagem rápida ou de checkpoints tradicionais reforça essa dependência total de suas próprias habilidades e percepções. Você precisa memorizar rotas, observar o ambiente e confiar em sua intuição. E é aqui que reside uma das narrativas mais poderosas do jogo. Em um RPG, seu personagem sobe de nível, ganha novas habilidades, fica mais forte. Em Baby Steps, Nate não muda. Ele começa e termina como o mesmo desajeitado de sempre. Quem “sobe de nível” é você, o jogador. Seu progresso não é medido por barras de experiência, mas pela sua crescente paciência, resiliência e habilidade. A jornada não é sobre Nate se tornar um herói; é sobre você aprender a dominar uma ferramenta imperfeita. É uma metáfora brilhante para o aprendizado de qualquer habilidade difícil na vida real: o instrumento não muda, mas a sua capacidade de usá-lo, sim.
Sinfonia para um Idiota
A estética de Baby Steps é uma aula de design intencional. À primeira vista, o jogo é feio. Os modelos de personagens são simplistas, as texturas são básicas e há um notável “pop-in” de objetos no horizonte. Mas chamar o jogo de “feio” é perder o ponto. Ele abraça uma estética “low-fi” que não é fruto de limitação, mas de uma escolha deliberada. É o “AAA cosplay” em sua forma mais pura: ele imita a escala e a ambição de um grande jogo de mundo aberto, mas o executa com o charme despretensioso e a estranheza de um projeto indie.
Os ambientes, apesar da simplicidade técnica, são surpreendentemente variados e evocativos. Você cambaleia por desertos áridos onde a areia escorre sob seus pés, sobe montanhas pitorescas com rios correndo ao lado, explora minas abandonadas e escuras, e até mesmo se depara com as ruínas melancólicas de um parque de diversões. Cada bioma não é apenas uma mudança de cenário, mas uma nova coleção de desafios mecânicos e visuais que mantêm a longa jornada sempre renovada.
Mas a verdadeira alma da apresentação de Baby Steps reside em seu design de som. A trilha sonora é, para dizer o mínimo, enlouquecedora, e absolutamente genial. É um sistema de música dinâmico e procedural, um mosaico sonoro composto por mais de 420 “batidas e vibes” que reagem a cada uma de suas ações. Se você estabelece um bom ritmo de caminhada, uma batida percussiva e cativante começa a tocar. Se você tropeça e cai, é saudado pelo som melancólico de um trombone ou por um ruído de animal aleatório. A trilha sonora é um personagem em si, um coro grego zombeteiro que celebra seus sucessos e zomba impiedosamente de seus fracassos. Ela é tão eficaz em criar o clima que, em momentos de extrema concentração, eu me vi forçado a silenciá-la, pois a zombaria auditiva era simplesmente demais para suportar.
A Montanha Não Trava
Em um jogo onde cada passo é uma batalha e cada queda pode significar a perda de um progresso suado, a estabilidade técnica não é um luxo, é uma necessidade absoluta. A jornada de Nate pode ser a definição de instabilidade, mas para o jogador no PlayStation 5, a experiência é tecnicamente sólida como uma rocha. E essa solidez é a base sobre a qual toda a filosofia de design do jogo se sustenta.
A análise aqui é menos sobre contar pixels e mais sobre sentir a consistência. Baby Steps roda a 60 quadros por segundo de forma estável, e isso é essencial. Em um jogo que exige precisão milimétrica e timing delicado, qualquer queda de quadros em um momento crucial quebraria a premissa fundamental: a de que a falha é sempre, e unicamente, sua culpa. Ocasionalmente, notei algum pop-in de texturas e objetos à distância, mas isso se alinha mais à estética “não polida” do jogo do que a uma falha técnica que impacte a jogabilidade. Durante minhas mais de 20 horas, não encontrei crashes ou bugs que quebrassem a experiência, garantindo que minha frustração fosse dirigida a mim mesmo, e não a problemas técnicos.
O Último Passo
Ao final da minha jornada de mais de 70.000 passos, o que me faz pensar se foi o dobro disso, após incontáveis quedas e algumas poucas, gloriosas conquistas, uma verdade se cristalizou: Baby Steps é uma obra-prima desconfortável. É um dos jogos mais originais, irritantes, engraçados e, em última análise, significativos que já joguei. Ele me levou do ódio mais profundo à admiração relutante, forçando-me a reavaliar minha relação com o fracasso, a paciência e a própria natureza do progresso.
A jornada é, sem clichês, o destino. A vitória não está em alcançar o cume da montanha, um objetivo que o próprio jogo sugere ser sem sentido. A verdadeira vitória reside nas pequenas epifanias ao longo do caminho: o momento em que a caminhada se torna um ritmo, a primeira vez que você supera uma subida que parecia impossível, a risada genuína diante de uma queda particularmente absurda. O jogo me ensinou a abraçar a lentidão, a encontrar beleza na imperfeição e a entender que o fracasso não é o fim, mas simplesmente uma parte inevitável do processo de aprendizado.
E é no final dessa jornada, na mensagem sutil que permeia toda a experiência, que Baby Steps revela seu coração surpreendentemente terno. A escalada da montanha é uma metáfora para a luta contra nossos demônios internos, a depressão, a insegurança, o isolamento. A teimosia de Nate, que espelha a nossa, em fazer tudo sozinho, em recusar qualquer mão estendida, é o verdadeiro obstáculo. O jogo termina não com uma grande recompensa ou uma fanfarra de vitória, mas com o simples ato de, finalmente, aceitar ajuda.
E essa é a lição que fica, a verdade que ecoa muito depois que os créditos rolam. Baby Steps nos deixa com a revelação de que o passo mais difícil que podemos dar na vida não é o primeiro, nem o mais alto, nem o mais perigoso. É o passo que damos em direção a outra pessoa para admitir nossa vulnerabilidade. Em um mundo, tanto real quanto virtual, obcecado pela autossuficiência, pela performance e pela vitória individual, essa é talvez a lição mais radical que um videogame poderia nos ensinar. No final, Baby Steps não é sobre aprender a andar. É sobre aprender a se apoiar.