Atordoada, uma jovem mulher acorda de uma espécie de coma na cama de um hospital. Ao tentar se levantar, ainda bastante tonta, bebe um pouco de água que se encontrava ao seu lado e chega a cair antes de minimamente conseguir se colocar em pé.

Em um móvel próximo à parede, e bem ao lado de sua cama, na distância de seu braço, há um crachá de identificação. Ela o alcança, vê seu rosto retratado no objeto e um nome: Mia Lorenson. Contudo, se Mia, e nós, agora sabemos o seu nome, resta então descobrir o que a levou até o estado deplorável que ela se percebe no início de Edengate: The Edge of Life, jogo desenvolvido e distribuído pela Hook, que chegou ao Brasil já com tradução para a nossa língua.

Disponível para PlayStation 4, Xbox One e computadores, o game foi lançado no fim da primeira quinzena de novembro deste ano.

 

Já de posse do controle da personagem principal, o jogador terá que se encarregar de sair da primeira sala e cruzar os corredores e demais salas do hospital de Edengate para ir descobrindo, junto com Mia, o que aconteceu não apenas com ela, mas, com a cidade e com as demais pessoas. Por que Mia não vê e não ouve mais ninguém? O que aconteceu com Mia e o que aconteceu antes dela ser hospitalizada?

Do que são feitos os sonhos?

A falta de respostas iniciais em Edengate são as engrenagens que vão conduzindo o jogo. Mais que engrenagens, representam também uma série de quebra-cabeças narrativos e de jogabilidade que caberão ao jogador ir montando. Apesar de Mia não ser a melhor das protagonistas, com ela de tempos em tempos fazendo algum comentário carregado com algum sarcasmo que na maioria das vezes depende das interações do jogador com os objetos e demais coisas pelo cenário, o background narrativo dela não é insatisfatório.

Pelos cenários, acessaremos partículas daquela trama a serem descobertas. Muita coisa, vale dizer, é opcional, dependendo apenas da vontade de quem joga em ir interagindo com aqueles fragmentos para sabermos mais sobre Mia, seu presente recente ou seu passado mais distante.

Esses fragmentos são representados por itens que estão espalhados pelos locais de Edengate. Eles sempre terão uma aparência ectoplasmática, como se fossem bibelôs espirituais que carregam uma história entre mundos. Ghostwire: Tokyo, lançado no início de 2022, possibilitava interações com objetos semelhantes. Ao se ter contato com estes objetos, de imediato, Mia e nós passamos a ter acesso às visões que estão ligadas ao item.

As visões, normalmente, trazem algum diálogo entre dois ou mais personagens e, a partir de um breve contexto animado em uma técnica que muito lembra a rotoscopia digital dos filmes Waking Life e Scanner Darkly, ambos do diretor Richard Linklater (Boyhood), nos fornecem novas dicas para o contexto de vida pessoal e/ou profissional de Mia.

O uso da técnica que lembra a rotoscopia casa com determinadas propostas filosóficas do roteiro, como a questão dos sonhos e do próprio cinema serem espécies de maquinários da pós-realidade ou do mundo dos sonhos.

Dos sonhos para a morbidez da realidade

Saindo do contexto mais filosófico e metafísico, Edengate é um jogo bastante tradicional em sua estrutura. Em termos de mecânicas de ação e interação, não há muito o que fazer com Mia a não ser andar, correr (que é apenas um andar na velocidade 1.5x, tristemente), empurrar certos objetos, subir ou descer de caixas ou prateleiras e se esgueirar ou se espremer para passar por baixo ou entre coisas.

Não há nada para atacar e nem mesmo há nada que ataque. Edengate pode ser jogado inteiramente sem que se seja abatido por nada ou ninguém. O que importa aqui é a história que se quer contar. E a história depende da curiosidade de quem joga em ir investigando gavetas, paredes, objetos, armários e outros locais e itens interativos.

Sem isso, talvez não tenhamos uma compreensão mais alargada e profunda do final, que é bastante aberto às interpretações e sensibilidade emocional de quem joga.

Com uma história que pode durar cerca de duas horas para quem for mais apressado, ou por volta de quatro horas para quem desejar investir mais tempo na caça destes fragmentos de histórias, e durante os seis curtos capítulos de Edengate, a estrutura básica se mantém quase que completamente, com a exceção de um pequeno trecho que muda a perspectiva do jogo até então. Sem spoilers, todavia.

Em muitos momentos, Edengate faz lembrar o esquema dos quebra-cabeças de jogos mais famosos como Resident Evil e Silent Hill. Espalhados pelos cenários, os puzzles não são complexos e o próprio jogo, a partir de uma mínima observação dos cenários e dos itens, encaminha-nos para a resolução do puzzle. O mais interessante é que, ao se demorar um pouco mais para se resolver uma charada, Mia irá entregar a solução em voz em alta, como se estivesse conversando consigo mesma, e não com o jogador.

Embora seja uma forma de facilitar o processo, é uma resolução forçada e que não confia na capacidade do jogador em resolver determinado enigma. É um jogo que, em geral, não quer que o jogador fique preso. O que importa é a história a ser contada, e que se chegue nela o quanto antes.

A força da trilha de Laryssa Okada na criação da atmosfera de Edengate

Antes mesmo de dar início ao jogo, por curiosidade e também para me abarcar de elementos sobre o desenvolvimento da obra, resolvi clicar na opção do menu inicial que me deixaria já ver os créditos finais da equipe de produção. Tal decisão se mostrou acertada, pois, logo após o primeiro crédito de Edengate, o de direção para Matthew Seiji Burns, diretor do premiado Eliza, vem o nome de Laryssa Okada. É um fenômeno raro que o segundo nome na produção de uma obra audiovisual (jogos, filmes, séries) seja o nome de um(a) compositor(a).

Com isso em mente, fiquei bastante atento aos possíveis impactos da trilha sonora de Okada para a criação e o aprofundamento da atmosfera antagônica à personagem. Ou condizente com Mia. E não deu outra. A trilha, de fato, é um fator indispensável ao clima que se quer criar e passar ao longo de Edengate.

Afora a história que se quer contar, e que está carregada de algumas importantes mensagens, a orquestração musical é o segundo fator do jogo que mais se destaca. É uma pena, no entanto, que não existam outros elementos mais que se destaquem…

Sobre a parte técnica de Edengate

Com o mote da descoberta de algo sério da ordem da saúde, e que provavelmente causou uma pandemia viral que pode ter dizimado uma cidade (sem spoilers: são detalhes da própria sinopse), a obra justifica a sua parte técnica a partir de sua própria trama. Se, possivelmente, houve uma devastação local, elimina-se a necessidade de se mostrar vários outros personagens, barateando-se o que precisa ser mostrado de outros designs de personagens a partir da já citada técnica de rotoscopia, que certamente diminuiu os custos finais de produção e pós-produção.

Um exemplo muito claro da eficiente redução de custos feito pela Hook pode ser notado quando se está em campo aberto, ou seja, fora da primeira área jogável, o hospital. Quando se está em campo mais aberto, Edengate utiliza-se relativamente bem de um jogo de luz e sombras para tornar bem menos visíveis certos elementos dos cenários, poupando gastos e tempo dos desenvolvedores em uma decisão acertada diante do escopo indie do jogo.

Assim, se estamos em um parque ou em uma rua, vemos apenas o que alguns poucos postes de luz ainda funcionando, refletores ou luzes de carros nos mostram. Some-se a isso o fato de que, quando estamos em áreas externas, ficamos sabendo que a trama se passa em um período noturno, também contribuindo para que mostrem-se menos coisas, não encarecendo o produto final.

De maneira similar, também em uma área externa, prédios no horizonte ajudam a bloquear o draw distance (a capacidade que o jogo nos dá de enxergar o seu próprio horizonte com determinada qualidade ou não). Assim, ao olharmos para frente em busca de respostas visuais sobre os possíveis efeitos da suposta devastação, tudo que conseguimos ver é um amontoado de prédios e demais estruturas cinzentas. Com isso, se mantém o foco sobre a narrativa que se quer contar, com os objetos ectoplasmáticos sendo responsáveis pelo que devemos saber da história. E ainda cortam-se gastos financeiros.

Edengate e suas referências

Durante o contexto da pandemia de Covid-19, a humanidade se deu conta que a arte e a cultura tornaram-se elementos ainda mais indispensáveis para a sobrevivência da saúde mental das sociedades do planeta. Mais do que nunca, a arte salvou muita gente antes mesmo das vacinas, visto que conseguiu acalentar mentes inquietas e esfareladas pela ansiedade, pela preocupação com o outro e pelo medo da contaminação.

E como Edengate foi desenvolvido durante a pandemia da Covid-19, ele se aproveita (no bom sentido) desse mote para tratar sobre aspectos como a negação da realidade e o negacionismo científico.  Quase que constantemente, Edengate deixa pelo cenário alguns livros da literatura clássica e trechos e frases em papéis ou bilhetes de outras obras. É quase como se o jogo apontasse que a arte e a cultura, em tempos doentios e virais, representassem a válvula de escape de humanidade, como acabou sendo durante os últimos anos pandêmicos.

E para além das referências literárias, há um momento específico para referenciar uma outra bastante significativa, e que tive o prazer de escrever o review: Stanley Parable. Mas, sem mais, direi apenas que apesar da referência visual, ela não passa disso, perdendo-se a oportunidade de haver um ganho considerável em termos de mecânica, infelizmente. Há também uma singela homenagem ao fenômeno Arquivo X.

Nota
Geral
5.0
edengate-the-edge-of-lifeEdengate: The Edge of Life ao mesmo tempo em que consegue ganhar pontos por tratar com seriedade os temas que estão atrelados ao jogo, peca por não conseguir oferecer uma jogabilidade satisfatória e que acompanhe as descobertas de quem joga, fazendo com que a obra, que já é bastante curta, torne-se relativamente cansativa, com apenas os dois últimos capítulos trazendo um pouco mais de dinamicidade.