Há um peso que se impõe sobre os ombros dos mestres. A Dotemu, junto de seus parceiros da Guard Crush Games, não são apenas desenvolvedores; eles se tornaram, nos últimos anos, os guardiões da alma do beat ’em up. Com Streets of Rage 4, eles não apenas reviveram um clássico, eles o redefiniram para uma nova geração, provando que a pureza da pancadaria arcade ainda tinha um pulso forte e vibrante. Foi um ato de ressurreição tão magistral que a expectativa para qualquer projeto subsequente se tornou um fardo, uma coroa de espinhos forjada pelo próprio sucesso. E então, eles anunciaram Absolum.
Não era uma sequência. Não era a revitalização de uma franquia esquecida. Era algo muito mais perigoso: uma ideia original. A primeira propriedade intelectual da Dotemu. E com ela, uma promessa audaciosa, quase arrogante: fundir a pureza visceral do beat ’em up com a estrutura metódica e punitiva do roguelite. Confesso que, ao ouvir a proposta, um ceticismo frio percorreu minha espinha. Seria possível engarrafar um raio pela terceira vez, ou essa ambição seria a pira funerária de uma reputação impecável? A questão que se formou em minha mente, e que me acompanhou por dezenas de horas no mundo de Talamh, era se essa fusão seria uma evolução harmoniosa, um casamento alquímico de gêneros, ou um choque discordante de filosofias, uma quimera desajeitada costurada com as melhores intenções.
O que encontrei foi algo muito mais complexo. Absolum não é apenas um jogo; é um campo de batalha para a alma de seus criadores. É a tentativa de um estúdio, célebre por sua maestria em reviver o passado, de provar que pode também criar o futuro. A tensão que permeia cada soco, cada morte, cada recomeço, não é apenas mecânica – é existencial. E a pergunta que me propus a responder não era mais se o jogo era bom, mas se ele conseguiria, sob o peso esmagador de seu próprio legado e ambição, forjar um caminho próprio ou se desintegraria em um belo e trágico monumento ao que poderia ter sido.
Crônicas de um Sol Apagado
Vamos tirar o óbvio do caminho. A premissa de Absolum, em sua superfície, é um pergaminho já lido mil vezes. No mundo de Talamh, um evento cataclísmico tornou a magia um tabu, um espectro temido pelo povo. Desta desconfiança, ergue-se o tirânico Rei Sol, Azra, que proíbe a feitiçaria e subjuga todos os seus praticantes com sua Ordem Carmesim. Um grupo de rebeldes, filhos de uma antiga protetora da magia, levanta-se para desafiá-lo. Sim, eu sei. Parece o tipo de enredo que a gente rabisca no verso de um guardanapo durante uma sessão de D&D. E, por um momento, temi que a narrativa fosse apenas uma desculpa esfarrapada para nos levar de uma tela de pancadaria para outra.
Mas eu estava enganada. Profundamente enganada. A verdadeira história de Absolum não está nos diálogos expositivos, mas nas cicatrizes de minhas repetidas falhas. O jogo desconstrói a narrativa tradicional e a reconstrói nos escombros de cada tentativa frustrada. A trama não é contada, ela é vivida. Cada morte não é um “game over”, mas um ponto e vírgula. Ao ser derrotada, eu retornava ao Santuário, o refúgio dos rebeldes, sob o olhar enigmático da feiticeira Uchawi, que nos revive para que possamos tentar de novo. Cada retorno era um novo capítulo, não da história do mundo, mas da minha história com ele.
O brilhantismo está em como Talamh se lembra de mim. Em uma das minhas primeiras incursões, decidi gastar recursos preciosos para ajudar a reconstruir uma ponte, facilitando a vida de alguns aldeões. Várias tentativas depois, ao escolher um caminho alternativo, fui recebida com desprezo por uma tribo de goblins que se sentiu traída pela minha aliança com seus inimigos humanos. Eles, que antes me ofereciam itens, agora atiravam comida podre. Foi um momento pequeno, mas de um impacto sísmico. O mundo não era estático; ele reagia, guardava rancor, evoluía com as minhas escolhas. A história é um mosaico, montado a partir de fragmentos: um diálogo melancólico com um NPC, um detalhe no cenário que só se torna claro após vinte horas de jogo, e o lento desvendar das tragédias pessoais dos quatro heróis.
E que heróis. Galandra, a cavaleira elfa com um braço necrosado que sussurra segredos de um passado sombrio; Karl, o anão robusto que carrega o peso de ser o último de sua linhagem; Cider, o ladino enigmático, uma fusão de humano e construto mecânico em busca de memórias perdidas; e Brome, o mago-sapo, impulsionado por uma vingança que o consome. Eles começam como arquétipos, mas a cada fracasso, a cada nova linha de diálogo desbloqueada, suas camadas são arrancadas, revelando personagens complexos e feridos. A história de Absolum não é sobre salvar o mundo. É sobre a arqueologia da esperança em um mundo que já foi salvo e perdido inúmeras vezes.
A Dança da Fúria e da Repetição
Há um termo que os entusiastas usam para descrever a sensação de um combate bem executado: “o molho”. É aquela qualidade intangível, uma mistura de responsividade, impacto e fluidez que transforma o apertar de botões em uma forma de arte. E, meu Deus, o “molho” de Absolum é uma iguaria divina. A Guard Crush Games, destilando a essência do que fizeram em Streets of Rage 4, criou um dos sistemas de combate mais prazerosos que já senti. Cada soco tem peso, cada chute conecta com uma satisfação visceral. Enfileirar combos, lançar um inimigo no ar, chutá-lo contra a parede e pegá-lo no rebote para continuar a punição se torna uma dança, um balé violento e cinético que é pura alegria. Nos momentos em que tudo se encaixa, Absolum é, sem hipérbole, um dos melhores beat ’em ups já feitos.
E então, a realidade bate. Forte. A estrutura roguelite se impõe como um carrasco. Minhas primeiras horas foram uma montanha-russa emocional. A euforia do combate sublime era seguida pela humilhação de uma derrota esmagadora. Eu, uma veterana do gênero, acostumada a terminar jogos com uma única ficha, me via esbarrando em paredes. Não era falta de habilidade; era falta de números. Meus reflexos de fliperama eram inúteis contra um chefe cujos pontos de vida superavam meu dano em uma ordem de magnitude. A morte não era apenas uma lição; era um requisito, uma ferramenta de coleta de recursos.
É aqui que o jogo arrisca perder o jogador. O grind é real. As primeiras dez, talvez quinze horas, podem parecer uma labuta. Morrer, voltar ao Santuário, gastar os cristais arduamente coletados em melhorias permanentes – um aumento de 2% no dano crítico aqui, 10 pontos de vida a mais ali – e mergulhar de volta na briga para, talvez, chegar um pouco mais longe. Houve momentos de frustração genuína, a sensação de que o jogo estava me punindo por não ser forte o suficiente, em vez de me desafiar a ser mais habilidoso. É uma filosofia de design que entra em conflito direto com a gratificação imediata do arcade.
Mas então, algo acontece. Aconteceu comigo por volta da vigésima hora. As melhorias permanentes começam a se acumular. Minha maestria sobre as mecânicas de defesa se aprofunda. E, de repente, os dois sistemas, o beat ’em up e o roguelite, param de brigar e começam a dançar juntos. Aquele chefe que parecia impossível agora tem sua guarda quebrada. Os combos se estendem por mais tempo, alimentados por habilidades que eu desbloqueei. A frustração se transforma em um estado de fluxo. O jogo “clica”. E nesse momento de epifania, Absolum se revela. Não é um beat ’em up com elementos de roguelite, nem o contrário. É uma nova criatura, uma experiência que exige paciência e perseverança, mas que recompensa essa dedicação com uma sensação de poder conquistado, forjado no fogo de inúmeros fracassos, que nenhum jogo puramente arcade poderia replicar.
A Alquimia do Caos
Se o gameplay é a alma de Absolum, suas mecânicas são o intrincado maquinário que a faz pulsar. No nível mais básico, temos o pão com manteiga de qualquer beat ’em up: ataques leves, pesados, agarrões e especiais. Mas é na defesa que a genialidade do design se revela. A esquiva é ágil e essencial, mas são suas variações que criam um teto de habilidade altíssimo. O “deflect”, uma esquiva executada no momento exato do impacto inimigo, funciona como um parry que abre a guarda do oponente para um contra-ataque devastador. Dominar o timing do deflect é o primeiro passo para transcender o simples esmagar de botões.
Acima disso, há o “clash”. Uma manobra de altíssimo risco e recompensa, que consiste em interceptar o ataque de um inimigo com um ataque próprio no frame exato. O sucesso resulta em um atordoamento prolongado do adversário, abrindo a maior janela de punição do jogo. Erre, e você receberá o dano total. É um sistema que recompensa a coragem e o conhecimento profundo dos padrões de ataque inimigos, transformando cada confronto em um tenso jogo de xadrez em alta velocidade.
Sobre essa base sólida de combate, o jogo derrama o caos delicioso de suas mecânicas roguelite. A cada nova tentativa, construímos um personagem diferente a partir de três pilares:
- Rituais: Bênçãos elementais, muito semelhantes ao sistema de Hades, que alteram drasticamente suas habilidades. Lembro-me com carinho de uma run em que acumulei Rituais de Fogo a ponto de cada soco meu gerar uma explosão em cadeia, transformando o campo de batalha em um inferno.
- Inspirações: Habilidades ativas específicas para cada personagem, desbloqueadas ao derrotar chefes. Elas são a chave para a evolução do estilo de jogo no meio de uma tentativa. Dar a Galandra um chute aéreo, por exemplo, não é apenas um novo golpe; é a chave para novos e extensos combos aéreos que antes eram impossíveis.
- Berloques: Itens passivos que fornecem os bônus numéricos fundamentais para qualquer build, como aumento de dano, mais vida ou maior velocidade de movimento.
A verdadeira magia de Absolum acontece na intersecção desses sistemas. É uma alquimia de sinergias. Em uma tentativa, consegui combinar um Ritual que criava adagas arremessáveis a cada deflect bem-sucedido com uma Inspiração que triplicava o número de projéteis e um Berloque que adicionava dano de veneno a todos os ataques. O resultado foi um personagem que se tornou uma fortaleza impenetrável, respondendo a cada ataque inimigo com uma chuva de lâminas tóxicas. Em outra, uma combinação infeliz de habilidades me deixou mais fraco do que quando comecei, uma lição cômica e dolorosa sobre a importância da escolha. É essa imprevisibilidade, essa possibilidade infinita de criar um deus da guerra ou um palhaço ineficaz, que confere a Absolum uma rejogabilidade quase infinita.
Um Pesadelo Desenhado à Mão
No meio de tanta complexidade mecânica, seria fácil perdoar Absolum se sua apresentação fosse meramente funcional. Mas ela não é. É, sem rodeios, uma das obras de arte mais impressionantes que já vi em um videogame. O trabalho do estúdio de animação Supamonks é de tirar o fôlego. O estilo visual evoca uma história em quadrinhos europeia ganhando vida, uma fusão da arte de capa de um álbum de heavy metal com a melancolia de um conto de fadas sombrio. A inspiração mais clara é a arte de Mike Mignola, de Hellboy, com suas tintas pesadas e sombras que parecem ter peso próprio, mas aqui ela é banhada em uma paleta de cores vibrantes e saturadas que cria um contraste fascinante. Cada cenário, das minas anãs de Grandery aos pântanos luxuriantes de Jaroba, é uma pintura em movimento, rica em detalhes e atmosfera. A animação desenhada à mão é de uma fluidez absurda, essencial para a responsividade do combate e um deleite para os olhos.
E então, há a música. Chamar de “trilha sonora” parece redutivo. É uma sinfonia de estrelas, uma declaração de intenções auditiva. A Dotemu reuniu um panteão de compositores lendários, e o resultado é uma montanha-russa emocional. Gareth Coker (Ori and the Blind Forest) estabelece o tom com temas orquestrais grandiosos que evocam uma aventura de fantasia épica. Suas músicas nos acompanham pela exploração, cheias de admiração e mistério. Mas, de repente, você entra na arena de um chefe, e a orquestra é violentamente silenciada. Em seu lugar, entra a guitarra distorcida e a bateria industrial de Mick Gordon (DOOM). A atmosfera muda instantaneamente de aventura para terror, de fantasia para agressão pura. A música não está apenas acompanhando a ação; ela está ditando a sua frequência cardíaca.
Como se não bastasse, em momentos de descoberta de lore ou de melancolia, surgem as melodias assombrosas de Yuka Kitamura (Dark Souls, Elden Ring), e a nostalgia aventuresca de Motoi Sakuraba (Tales of, Golden Sun). Essa diversidade não é aleatória; é uma ferramenta narrativa. A trilha sonora é um participante ativo, manipulando o estado emocional do jogador para acentuar cada fase do ciclo roguelite: a calma da preparação, a maravilha da exploração, a adrenalina do combate e a reflexão da derrota. Complementando tudo isso, o design de som é impecável. Cada soco, cada bloqueio, cada feitiço tem uma textura sonora que torna o combate tangível. É uma experiência audiovisual completa, coesa e absolutamente espetacular.
A Tempestade Silenciosa
Toda essa beleza artística e complexidade mecânica seriam em vão se o jogo não rodasse perfeitamente. Deixo claro que minha experiência foi inteiramente no PC, em uma máquina equipada com uma RTX 4060, um processador Ryzen 7 5700X e 32 GB de RAM. E o desempenho foi, em uma palavra, impecável. Com todas as configurações no máximo, jogando em resolução 1440p, a taxa de quadros permaneceu cravada em seu limite, sem uma única queda, um único engasgo, mesmo nos momentos mais caóticos, com a tela explodindo em efeitos, inimigos e projéteis.
O Peso da Coroa
Ao final da minha jornada por Talamh, após incontáveis mortes e uma gloriosa vitória final, a dualidade de Absolum se cristalizou. Dentro deste jogo habita um dos sistemas de combate beat ’em up mais sublimes e gratificantes já criados. Mas ele está acorrentado a uma estrutura roguelite exigente, por vezes punitiva, que demanda uma paciência que nem todos terão. É um jogo de picos de euforia e vales de frustração.
Retorno, então, à minha questão inicial. A Dotemu conseguiu realizar sua fusão ambiciosa? A resposta não é um simples “sim” ou “não”. Eles não criaram uma amálgama perfeita e sem costuras. As emendas entre os dois gêneros são, por vezes, visíveis e abrasivas. O grind inicial pode afastar os puristas do arcade, e a entrega fragmentada da história não agradará àqueles que buscam uma narrativa cinematográfica tradicional.
E, no entanto, apesar de suas imperfeições, Absolum é um título marcante. É um experimento ousado, necessário e, em última análise, brilhante. Ele arrasta o gênero beat ’em up para fora de sua confortável zona de nostalgia e o força a evoluir, a se tornar algo mais. Prova que o casamento da pancadaria arcade com a progressão profunda e persistente não só é possível, como pode gerar experiências de uma profundidade e longevidade antes inimagináveis para o gênero.
Absolum não é o herdeiro perfeito que o trono do gênero esperava. É o rebelde barulhento e imperfeito que o trono precisava para não desmoronar em irrelevância. E por essa audácia, ele merece não apenas nosso respeito, mas um lugar permanente na memória.